Enfermeiros substituem farmacêuticos em suas atribuições no Pernambuco

Imagine uma rua movimentada, no centro de uma cidade do interior de Pernambuco. Essa rua é real!  É cheia de farmácias, mas, uma delas acaba chamando mais a atenção do que as outras por conta de uma novidade: essa farmácia possui um consultório de enfermagem!

Frente a essa denúncia recebida pelo jornalismo do ICTQ – Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico, foi enviada uma equipe de reportagem até aquela farmácia, que fica em Gravatá (PE) – uma importante cidade localizada a 84 km da capital, Recife, com área de 513,4 km² e população de 228.093 (Censo IBGE 2010).

A equipe constatou o seguinte: logo na entrada, pôde ser visto que havia uma enfermeira fazendo a aferição de pressão no interior do estabelecimento, de forma gratuita, em todas as pessoas que se interessavam por aquele serviço.

A reportagem, composta por produtores ocultos, conheceu o consultório do enfermeiro, que também é dono daquele estabelecimento. A sua identidade será preservada, neste momento, por não ser o foco central dessa reportagem e para não expor aquele profissional.

Inicialmente, foi constatado que, em cartazes e fôlderes dispostos no local, havia a informação dos seguintes serviços que o enfermeiro e sua equipe prestam dentro da farmácia, todos a um custo entre R$ 50,00 e R$ 60,00 (dependendo de cada caso):

– Laserterapia (no tratamento de feridas);
– Curativos (simples e especiais);
– Cuidados podiátricos;
– Moxabustão (feita por fisioterapeuta);
– Terapia compressiva;
– Sutura não invasiva;
– Auriculoterapia a laser;
– Debridamentos;
-Ventosaterapia (feita por fisioterapeuta);
– Manipulação Miofascia (feita por fisioterapeuta);
– Procedimentos de enfermagem em geral; e
– Consulta de enfermagem (com preço fixo de R$ 50,00).

Farmacêuticos estão perdendo lugar?

Vale um tema para a reflexão da classe: há uma parcela da categoria farmacêutica que está empreendendo e montando negócios rentáveis e com importantes retornos à população. Isso é louvável e deve ser incentivado, mas que tipo de suporte toda a classe está recebendo para, de certa forma, barrar a entrada de outros profissionais em seu segmento?

A farmácia de Gravatá pode ser considerada um exemplo de que outras categorias profissionais podem invadir as atribuições dos farmacêuticos. Importante entender, lutar contra isso e, quando possível, denunciar!

Além deste exemplo do consultório de enfermagem de Gravatá, há também o de grandes redes, como a Araújo e a Pague Menos, que teriam substituído os farmacêuticos na aplicação de vacinas por enfermeiros.

Vae citar outro exemplo recente, denunciado pelo Portal de Conteúdo do ICTQ, de que uma rede de farmácias do Sul do País teria contratado médicos cubanos para fazer serviços farmacêuticos. Leia matéria aqui.

Antibiótico sem receita

No momento da visita, um membro da equipe de reportagem perguntou sobre o farmacêutico e descobriu que ele não estava presente, o que, por si só, já seria uma irregularidade. Mesmo assim, ele solicitou uma caixa de amoxicilina, o que foi prontamente dispensado por um valor de R$ 9,70.

Vale lembrar que a dispensação dos antimicrobianos (de acordo com a RDC 20/11, Art. 9º, § 2º, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e as resoluções do CFF 542/11 e  571/13)  é privativa do farmacêutico, com retenção de receita. Apenas a escrituração pode ser feita por uma pessoa treinada, mas sob sua supervisão.

Documentação

Para checar a regularidade do estabelecimento, a equipe buscou por identificações legais, que devem ficar em quadros visíveis ao público. Foram encontrados apenas o certificado do bombeiro e o alvará da prefeitura (além dos certificados profissionais do enfermeiro).

Porém, a grande maioria dos documentos exigidos não estava na farmácia de Gravatá!

A RDC 44/09, da Anvisa, no art. 2º diz que deve haver os seguintes documentos no estabelecimento:

I – Autorização de Funcionamento de Empresa (AFE) expedida pela Anvisa;
II – Autorização Especial de Funcionamento (AE) para farmácias, quando aplicável;
III – Licença ou Alvará Sanitário expedido pelo órgão Estadual ou Municipal de Vigilância Sanitária, segundo legislação vigente;
IV- Certidão de Regularidade Técnica, emitido pelo Conselho Regional de

Farmácia da respectiva jurisdição; e

V – Manual de Boas Práticas Farmacêuticas, conforme a legislação vigente e as especificidades de cada estabelecimento.
§1º O estabelecimento deve manter a Licença ou Alvará Sanitário e a Certidão de Regularidade Técnica afixados em local visível ao público.
§2º Adicionalmente, quando as informações a seguir indicadas não constarem dos documentos mencionados no parágrafo anterior, o estabelecimento deverá manter afixado, em local visível ao público, cartaz informativo contendo:

I – razão social;
II – número de inscrição no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica;
III – número da Autorização de Funcionamento de Empresa (AFE) expedida pela Anvisa;
IV – número da Autorização Especial de Funcionamento (AE) para farmácias, quando aplicável;
V – nome do Farmacêutico Responsável Técnico, e de seu(s) substituto(s), seguido do número de inscrição no Conselho Regional de Farmácia;
VI – horário de trabalho de cada farmacêutico; e
VII – números atualizados de telefone do Conselho Regional de Farmácia e do órgão Estadual e Municipal de Vigilância Sanitária.

É permitido o consultório em farmácias?

A lei 5991/73, no Art. 55, diz que é vedado utilizar qualquer dependência da farmácia ou da drogaria como consultório, ou outro fim diverso do licenciamento, regulamentado pelo decreto 74.170/74, Art. 57. Apenas o consultório farmacêutico está assegurado, segundo a Resolução 585/13 do CFF.

Entretanto, a montagem de consultórios e clínicas de enfermagem está respaldada pela Resolução 568/18, do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), e as atividades a serem desenvolvidas nesses locais estão regulamentadas pela Lei 7.498/ 86 e pelo Decreto 94.406/87.

De acordo com a enfermeira fiscal do Conselho Regional de Enfermagem de Pernambuco (Coren-PE), Ana Célia Marinho, a resolução Cofen 568/18 não define local específico para o funcionamento de consultórios de enfermagem.

Em seu anexo, estabelece critérios para o licenciamento e funcionamento, bem como requisitos para a responsabilidade técnica do enfermeiro. Mais adiante o Cofen também deliberou, por meio da resolução 606/19, modelos de formulários para requerimento de cadastro de consultórios e clínicas de enfermagem, bem como os respectivos registros.

No entanto, ela alerta: “enfermeiros e farmacêuticos não ofertam os mesmos serviços, em razão das competências legais distintas”. Sobre a prescrição, ela afirma que os enfermeiros podem prescrever medicamentos estabelecidos em programas de Saúde Pública e em rotina aprovada por instituição de Saúde, conforme descrito no artigo 11, inciso II, alínea “C” da Lei 7.498/86. “Também compete aos enfermeiros à solicitação de exames de rotina e complementares, conforme resolução do Cofen 195/97”, lembra Ana Célia.

Ana Célia afirma que a atividade segue com base na Lei 7.498/86 e decreto 94.406/87, que regulamentam a profissão de enfermagem, bem como algumas normativas do sistema Cofen/Conselhos Regionais de Enfermagem.

Enfermeiro empreendedor

Apesar desse suposto mar de ilegalidades, não há como negar a veia de empreendedorismo do enfermeiro, já que ele deixou o serviço público de emergência em um hospital para montar a farmácia e o consultório.

Ele foi entrevistado, desta vez por telefone, posteriormente à visita inicial da equipe. Ele contou que empregava, em seu estabelecimento, um farmacêutico, um técnico em enfermagem e um balconista. Eventualmente, há um fisioterapeuta que faz o atendimento de moxabustão, ventosaterapia e manipulação miofascial. Ele garantiu que havia um farmacêutico responsável técnico na farmácia.

Quando indagado sobre a venda de controlados e antibióticos, ele garantiu que não vendia esses medicamentos, porque dependia de “permissões burocráticas, como a inscrição na Anvisa”, mas garantiu que estava cuidando do tema.

Seu consultório tem infraestrutura adequada para atendimentos de enfermagem, como mesa, computador, maca etc. A farmácia também tem serviço de entrega.

CRF-PE

O secretário-geral do Conselho Regional de Farmácia de Pernambuco (CRF-PE), afirmou que ainda não tinha conhecimento sobre o fato relacionado a essa farmácia de Gravatá e não tinha avaliado o mérito da legalidade do estabelecimento. Ele afirma que há serviços que são comuns às duas profissões e há serviços que são privativos do farmacêutico dentro da farmácia. Para cuidados paliativos, as duas áreas podem exercer, porém ele questiona que isso esteja sendo desenvolvido dentro do estabelecimento. “Dentro da farmácia, o responsável técnico é quem deveria exercer esse papel”, avalia ele.

Fonte: ICTQ