Quase todo mundo sabe que comercializar produtos com finalidade terapêutica ou medicinal que sejam falsificados, corrompidos ou adulterados é ilegal. Mas pouca gente sabe que importar e comercializar um shampoo anticaspa pode levar a responder a um processo por crime hediondo. A polícia, porém, sabe.
Impondo pena mínima de 10 anos de reclusão, o artigo 273 do Código Penal, em parte para proteger a saúde pública, em parte para defender interesses comerciais da indústria farmacêutica nacional, proíbe a importação, a distribuição, o depósito e a venda de medicamentos, matérias-primas, insumos farmacêuticos, cosméticos, saneantes e produtos de uso em diagnósticos que, mesmo não falsificados ou adulterados, não tenham o devido registro interno na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Percebe-se que o tipo penal não trata apenas de medicamentos, mas também de todos os saneantes e produtos cuja descrição indique finalidade terapêutica, como, por exemplo, melhorar a saúde capilar.
Assim, importar e comercializar um shampoo anticaspa ou frascos de botox, mesmo que sejam aprovados por órgãos internacionais criteriosos como o FDA (Food and Drug Administration) e o EMA (European Medicines Agency), mas sem a chancela da Anvisa, pode ser considerado crime no Brasil, e dos mais graves.
A pena mínima de 10 anos atribuída a quem comercializar shampoo anticaspa sem registro na Anvisa destoa da condenação mínima muito menos gravosa, de 5 anos, para quem comercializar substâncias como crack ou heroína.
Nesse contexto, no dia 23 de maio, 14 estandes da feira hospitalar realizada na Expo Center Norte, em São Paulo, a maior feira do setor, foram interditados, e ao menos 20 pessoas que trabalhavam nesses estandes expondo seus produtos foram encaminhados para prestar depoimento na Polícia Civil. Tudo decorrente de uma fiscalização coordenada entre a Anvisa e a Associação Brasileira da Indústria de Artigos e Equipamentos Médicos e Odontológicos (Abimo).
A ação apreendeu equipamentos de diagnósticos como monitores cardíacos, equipamentos de videocirurgia, medidores de pressão arterial e equipamentos ortopédicos que foram importados para exposição e alegadamente não tinham registro no Brasil.
Da mesma maneira, há inúmeros registros de prisões em flagrante realizadas em aeroportos de todo o país, quando médicos ou desavisados buscam adentrar a zona alfandegária com mala de mão contendo substâncias como hormônios naturais, produtos cosméticos, produtos relacionados ao setor fitness e de saúde, que ostentem finalidade terapêutica em seus rótulos, mas sem registro na agência reguladora nacional.
Clínicas médicas relacionadas ao ramo de estética, plástica e nutrição são as preferidas das fiscalizações policiais, e sempre que encontrada alguma substância importada e sem registro, lá se vai o médico ou médica para a delegacia, preso em flagrante pela suposta prática de crime hediondo.
Frequentes fiscalizações levadas a cabo nos centros de capitais também acabam por prender em flagrante pequenos comerciantes que vendem chás popularmente conhecidos como medicinais (chapéu de couro, unha de gato etc.), ou produtos alimentares cujo descritivo indique finalidade terapêutica, como diminuição da queda de cabelos, cura de impotência, melhora de diabetes etc.
É evidente a gravidade do crime cometido por quem falsifica ou adultera produtos para tratamento ou diagnóstico médico, crime que pode resultar em mortes ou deteriorações graves de saúde. Já pensou a consequência de um produto falsificado para tratamento com radioterapia? E a inserção no mercado de um antibiótico placebo? Grave.
Mas será que o tipo penal precisa também punir indiscriminadamente quem vende a granel um saneante feito no quintal de sua casa no interior do estado? Ou quem usa em sua clínica botox de última geração aprovado pelo FDA, mas esquecido nos escaninhos da Anvisa?
Cereja do bolo: recentemente o escritório em que trabalho foi procurado por um senhor, na casa de seus 70 anos, investigado pelo cometimento do crime do artigo 273 do Código Penal por supostamente comercializar uma jarra imantada para colocar água, cuja caixa indicaria que o caráter imantado do produto traria diversos benefícios à saúde. Se o senhor for denunciado, enfrentará um processo que aponta para 10 anos de pena mínima por uma jarra imantada de água.
Esses episódios levam ao descrédito todo o sistema penal. A existência de tipificação abarcando condutas que não têm o menor potencial ofensivo para a saúde pública, mas com consequências demasiadamente agressivas, apenas fomenta abusividade policial nas fiscalizações e ratifica o lugar do Brasil nas lanternas do desenvolvimento, à mercê dos interesses comerciais da indústria farmacêutica local e da extrema burocracia da Anvisa, cuja demora para registrar produtos já usados com sucesso e por anos no restante do mundo é incompreensível.
Assim, fica difícil para o cidadão manter a fé na Justiça.
Fonte: ConJur