Maconha contraria a lógica financeira tradicional da indústria farmacêutica

Por pouco, uma empresa farmacêutica brasileira não conseguiu registrar patente do canabidiol – vulgo CBD – dissolvido em qualquer óleo natural. Em outras palavras: uma empresa quase conseguiu tornar-se dona da propriedade intelectual de uma substância inventada pela evolução, produzida pela natureza, desde que esteja dissolvida em algum óleo, incluindo de gergelim, soja, milho, semente de uva, amendoim, abacate, copaíba, oliva, noz, bacalhau, amêndoa, castanha, algodão, macadâmia e mais um monte de opções – basicamente todas as disponíveis.

Como o CBD não é solúvel em água, ele precisa ser misturado com algum desses óleos para poder ser consumido como medicamento. Ou seja: se o pedido de patente tivesse passado, a Pratti Donaduzzi, do Paraná, teria direito de explorar com exclusividade um mercado de milhões de pacientes.

Se isso tivesse acontecido, tanto os outros laboratórios brasileiros e estrangeiros que estão desenvolvendo produtos com canabinóides quanto os pacientes e associações que ao longo dos últimos cinco anos ganharam na Justiça o direito de cultivar cannabis e produzir seu próprio óleo de CBD subitamente iriam encontrar-se em situação de violação de patente. Num espaço onde hoje muita gente está atuando, uma só empresa passaria a ter monopólio.

Não aconteceu porque pesquisadores que trabalham com medicamentos produzidos a partir de canabinóides – substâncias extraídas da maconha, como o CBD – notaram o pedido de patente, acharam absurdo e protestaram junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi), que acabou indeferindo a patente, no mês passado.

Na verdade a Pratti tentou ir mais longe ainda. Num primeiro momento, em 2016, ela tentou registrar a patente de “composições orais contendo canabinóide” – ou seja, basicamente qualquer remédio oral feito a partir da cannabis. O Inpi não deixou, porque isso incluiria o THC, substância psicoativa proscrita do Brasil. A Pratti então deu uma ajustadinha na ambição e resolveu limitar seu monopólio a um dos canabinóides – o CBD, que é um medicamento poderoso para muitos males, inclusive epilepsia e ansiedade – dissolvido em óleo.

“Talvez a palavra seja forte demais, mas me parece que é um pedido fraudulento de patente”, diz o neurocientista Fabrício Pamplona, que ajudou a evitar que a patente fosse registrada. “Para ter a patente, é preciso ter desenvolvido um método original. E faz décadas que se dissolve CBD em óleos”. Séculos, talvez.

A tentativa da Pratti chegou perto de passar porque, durante o governo Temer, o Inpi chegou a anunciar a intenção de aprovar pedidos de patente automaticamente, sem análise, como forma de reduzir a imensa fila de espera para um registro. Se essa ideia tivesse prosperado, teria sido difícil perceber a intenção da Pratti e evitar que ela se concretizasse.

Essa história é um bom exemplo de como a medicina feita a partir de canabinóides coloca em cheque a forma tradicional da grande indústria farmacêutica trabalhar. A maioria dos remédios que você encontra na farmácia hoje tem origem em algum organismo da natureza – plantas, bactérias, fungos, algas, animais.

O que a indústria costuma fazer é encontrar uma molécula com utilidade medicinal, e aí aprender a fazer cópias dela, em laboratório, normalmente a partir de moléculas orgânicas tiradas do petróleo. Isso porque ninguém pode patentear algo que a natureza fez, mas pode patentear a cópia – o medicamento sintético, como se diz.

Pode também patentear um método de preparo de algo tirado da natureza – foi o que a Pratti tentou. Mas só se esse método for de verdade uma inovação. Patentear algo que milhares de pessoas fazem há décadas com algo encontrado na natureza não pode, claro.

A patente é importante porque garante o mercado. Faz sentido para uma empresa gastar dezenas, centenas de milhões de reais para testar um medicamento, porque ela sabe que, se der certo, ela depois terá a garantia de atuar sozinha, sem concorrentes.

Essa conta não fecha com a cannabis. Primeiro porque a planta não possui só uma substância. Ela possui centenas, e as pesquisas mais recentes mostram que não adianta tomar só uma ou outra isolada – a maçaroca de um monte de moléculas misturadas claramente funciona muito melhor, exige doses menores e tem menos efeitos colaterais. É o que se convencionou chamar de “ efeito comitiva ”.

A Pratti, antes de tentar convencer o Inpi de que é dona de algo que a natureza fez, já tinha registrado uma versão sintética do CBD. O ministro da cidadania, Osmar Terra, inimigo jurado da cannabis, elogiou esse registro, porque acha que criar canabinóides sintéticos pode ser a solução para atender os pacientes sem mudar o status legal da planta que ele odeia.

Como a indústria não consegue patentear os canabinóides naturais, elas têm menos interesse financeiro em bancar testes clínicos, que são caríssimos. Isso ajuda a entender a insuficiência de pesquisas com a planta. Ajuda também a entender por que, quando o assunto é cannabis, a própria sociedade tem se mobilizado para fazer pesquisas, para tentar compensar o desinteresse da indústria.

É fácil retratar empresas como a Pratti como vilões, que tentam roubar a propriedade intelectual das plantas e criar sintéticos que funcionam pior que a natureza. Mas a verdade é que eles são um negócio, e estão tentando criar produtos – eles vivem disso, e precisam garantir mercados para poder investir.

Num mundo no qual um cultivador clandestino produz remédios de qualidade superior ao de uma empresa farmacêutica, fica difícil mesmo para elas competirem. E a consequência negativa disso é que vai faltar pesquisa.

A cannabis é mais do que apenas uma nova fornecedora de moléculas para a indústria. Para que ela vire um medicamento realmente útil para muita gente, ela vai exigir novos modelos comerciais e uma nova lógica de produção.

Provavelmente, as empresas farmacêuticas que vão se destacar nesse mundo novo não serão mais aquelas capazes de dar mais escala para moléculas específicas, mas as que conseguirem produzir plantas verdadeiramente únicas e padronizadas. E talvez tenham que fazer isso sem a garantia de uma patente abrangente que lhes garanta um monopólio – ou seja, com mais risco.

Será muito mais difícil, mais complexo – e provavelmente menos lucrativo. Talvez essa nova indústria tenha que conhecer plantas com uma profundidade que nunca foi exigida de um laboratório farmacêutico. Dá para entender de onde vem a tentação para que uma empresa resolva tentar arrumar um atalho, registrando algo que nunca foi seu.

Fonte: Época